Por Bárbara Soares
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Entre um dia e outro, em um dos eventos que coordenei na área de eventos, me deparei com uma situação desagradável com a equipe. O cliente, que era chinês, e que havia contratado a nós, decidiu nos frear bruscamente no momento em que os colaboradores se serviam no buffet de almoço.
A polêmica girou basicamente em torno do fato do intermediador haver negociado conosco, intérpretes, que nos ofereceria almoço no evento em que trabalharíamos mas a ponta contratante – o cliente final – parecia não estar a par e não gostar nada nada do fato da infâmia possibilidade de estarmos no mesmo recinto que os ‘executivos’ do evento corporativo em questão. Tal foi a situação que precisei bater o pé para permitir que a equipe já com a faca e o queijo na mão literalmente não se desfizesse de seu prato de comida (...)
– Pois bem, a discussão girou em torno do fato de um intérprete de conferências não poder sentar à mesa ao lado de um CEO. Eu insisti que não estávamos a par sobre a hierarquia e a proibição - ela por sua vez insistiu que isso era o mesmo que sua empregada doméstica se sentar ao lado do dono da casa. Não preciso nem dizer que a discussão rendeu. Ela em português achinesado e eu em português bem do brabo.
Disse a ela que na minha casa todos se sentavam na mesma mesa e que não tinha isso não. Ainda enfatizei que aqui no Brasil todos se sentam juntos à mesa. Ela arregalou aqueles olhinhos e repetiu algumas vezes a pergunta “sua emplegada doméstica come com você na mesa?”, “a emplegada doméstica, está segura”? Eu insisti que sim e o resultado da negociação já com o coração pra lá de acelerado e a pressão pra lá de alta, foi que: ela por fim nos permitiu almoçar, desde que no canto do restaurante, “debaixo da escada do hall do restaurante”. Redimidos fomos todos, fizemos nossa refeição e com um gosto amargo, como sobremesa retornamos às cabines de interpretação para ser a voz dos executivos e sua plateia.
Não preciso dizer que esse é um benefício que não é privilégio apenas para nós, intérpretes de conferência, apesar de defendermos o ofício com unhas e dentes, falar de nossa intelectualidade, somos reduzidos digamos às castas a qual pertencemos (do ponto de vista de quem contrata).
Verdade é que, eu afirmei para minha cliente chinesa que no Brasil nós nos sentávamos todos à mesa e eu menti.
Há desigualdade. Há castas. Há olhares. Há diferenças. Há desvios. Há julgamentos.
Não sei se consigo enumerar as diferenças e as hipocrisias todas.
A mais forte para mim hoje, é o fato de ser mulher. Quantas foram às vezes em que o homem se refere a outro homem ao invés de se referir à mulher. Outro dia destes com meu esposo, conseguimos adquirir o veículo dos sonhos, me desdobrei em mil guardando dinheiro e ele também. No dia de buscar o carro com o famoso laço vermelho, o gerente da loja entregou a chave ao meu marido, chamou ele pelo primeiro nome, o chamou de senhor e foi explicando todas as tecnologias do mesmo, me deixando para trás. Eu, que havia me arrumado com meu melhor vestido, toda perfumada, fui me apequenando ali e me sentindo menor e menor (...) De repente despertei do pesadelo adiante: já habituada a me defender, fui logo dizendo: - com licença senhor, mas eu também vou dirigir o veículo – preciso que me explique também as funcionalidades. Ele trocou olhares com meu marido, como que, esperando que ele consentisse aquilo. Meu marido rapidamente fez questão que eu me sentasse no banco do motorista e que tudo fosse explicado a ambos.
Esse é só um pequeno exemplo dos inúmeros. Há pessoas que irão dizer bem assim: “é por respeito à esposa, é por etiqueta, é por isso, por aquilo”. Mas che cazzo! Tantas titulações, esforço, trabalho, para terminarmos assim. E se, nos defendemos, somos vistas como feministas sem causa. Enfim. Mas não é bem este o mote deste texto caro autor, não estou aqui para lamuriar, a coluna não é o muro das lamentações não.
Estou aqui depois de um inverno sem novidades, para comentar que li um livro maravilhoso (sim, na era da IA eu ainda leio com esses olhinhos): a obra se chama "Casta: As origens de nosso mal-estar", da jornalista e vencedora do prêmio Pulitzer Isabel Wilkerson, que deu origem também a um filme chamado "Origin" (2023), dirigido por Ava DuVernay. Presente para este ano melhor não há.
A autora sustenta uma teoria que de repente fez todo o sentido para mim. Faço delas, minhas palavras, como empréstimo, e as reproduzo aqui para ti caro leitor: Isabel Wilkerson, jornalista vencedora de Pulitzer, redefine a compreensão das estruturas sociais em que nos inserimos, preferindo o uso do termo castismo ao habitual racismo.
Nesta obra, a autora associa aqueles que considera os três principais sistemas de castas, o do Estados Unidos, o da Índia e o da Alemanha nazi, às respetivas influências culturais, políticas e legais, remontando a pesquisa ao tráfico negreiro e até à diáspora lusitana, da qual, à chegada à Índia, resultou o aparecimento da palavra portuguesa casta, para raça, linhagem. Com uma impressionante lista de referências a notícias, estudos, documentos, declarações, decisões administrativas e judiciais de vários países e épocas, Wilkerson estabelece um perturbador elo entre os castismos mundiais através de oito pilares estritamente delimitados.
A colonização dos Estados Unidos pelos povos europeus e o que dela resultou para os protocolos de casta e para os contornos políticos atuais em todo o mundo, é revista pela autora num intenso e perturbador desfile de histórias individualizadas de escravatura e insensibilidade, apresentadas com vívido e estonteante detalhe.
Ninguém, onde quer que viva ou que cor tenha na pele, pode dar-se ao luxo de desconhecer uma história do mundo contada assim.
A sensação caro leitor(a), é que o objetivo maior é exercer o poder, é criar relações de submissão, hierarquias, relativização em uma intenção maior de enfraquecer nossa mentalidade e nossa crença no universo incrível em que cada um de nós carrega em suas vivências e experiências enquanto seres vivos.
Não é meu objetivo aqui que nos rebelemos, e sim que façamos uma reflexão:
- você, hoje, que pensa que subiu alguns degraus da escadinha, não vê, que também pertence a alguma espécie ou grau de casta? Somos todos pertencentes a um sistema enredado de castas. Onde pensarmos que estamos sendo convalescentes ao próximo, na realidade, estamos tentando ser piedosos como forma de nos sentirmos superiores.
As doenças que não curamos, as guerras que não cessamos, as relações que não colocamos ponto final, as explicações que evitamos dar ou ouvir, os sonhos que não perseguimos, os nãos que aceitamos e as promessas que não verbalizamos.
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Creio que a obra da autora é um chamado a sairmos da hipocrisia e entender um pouco mais a origem do mal-estar que sentimos ou que provocamos no outro.
Que o mês de Junho seja de clareza moral para você e um convite à mesa!
Bons ventos e boas leituras hoje ao ler esta matéria.
Com amor, de sua autora linguista, apreciadora do conceito Um Mar de Palavras e do silêncio que excede todo o entendimento, a paz de Deus.
GRATIDÃO, Bárbara Soares.