Ivo Aparecido Franco
Há uma série de privilégios em ser um morto, que o diga Bruce Willis em o Sexto Sentido, só porque um morto não tem mais os desideratos da vida, tampouco necessidade, sequer de um copo d´água.
O personagem central desse texto, obteve todos os privilégios concernentes aos mortos, mas de fato estranhava um pouco sua recém assumida condição. Desde que tudo ocorrera, passa por seus pais feito espectro, com um espectro, como uma espécie de entidade translúcida, um possuidor do anel de Giges.
Em cada um dos cômodos da moradia, perpassava outras épocas: um natal qualquer comendo panetone, outro com a família inteira reunida fofocando, dezembro com gosto de farofa, lasanha, doce. A mesa era rigorosamente a mesma de madeira de lei, cuja alma fora arrancada à força por uma serra elétrica desconhecida. O aço, que sinaliza o fim das estrelas, também ceifa muitas vidas por aqui. O tempo é uma espécie exótica de aço.
Na nova condição, percorria os cômodos, observando-os como se fossem cada um deles espaços independentes uns dos outros no multiverso. Desse modo, os quartos, antes lugares abertos para que freqüentasse como quisesse, na sua ausência foram trancafiados. De algum modo, seus pais temiam que ele, feito entidade exótica, fizesse uso da invisibilidade para roubar ou destruir alguma coisa.
Houve dias em que via filmes com a família. Dias memoráveis em que sua chegada era celebrada dentro de casa. Nessa nova condição, não há mais razão para essas coisas. Nova existência, outras demandas, não há que se celebrar quem não exista.
Seus pés já não sentiam o quintal em que tantas vezes jogara futebol, onde em muitas delas imaginou ser famoso, um vencedor do Campeonato Brasileiro. Mas quando não se é mais visto, não faz mais diferença alguma.
Nessa “desvida”, os objetos inanimados pareciam ter muito mais vivacidade e até mesmo valor que ele próprio, desse modo, tinha de ver a mãe lustrando as coisas com um carinho até maior do que teria pelos seres humanos.
Não há muitas coisas que uma alma penada possa fazer, a não ser assombrar um cômodo qualquer, onde não haja ninguém, por paradoxal que seja.
Os dias passavam desse modo, os pais em freqüentes atividades cotidianas desprovidas de necessidade ou urgência. Condenado a assistir este terrível espetáculo, sentia-se como as árvores do quintal.
Dia desses, enquanto os dois idosos se desdobravam em milhares de atividades insignificantes e compras que contam menos ainda, seu pai esbarrou no ombro dele. Olhou feio. Pediu desculpas e seguiu rumo a lugar algum. A morte é algo terrível. A indiferença é uma espécie de morte com requintes de crueldade.