Ivo Aparecido Franco
Por Wibberley Beletti:
“Meu mundo e nada mais”
No ano de 1994, época bastante importante para a Seleção Brasileira, devido ao tetracampeonato, havia, no grande ABC, uma menina de 7 anos que adorava assistir aos jogos com os vizinhos. Ela estudava em São Caetano do Sul, próximo à Avenida Kennedy, onde as enchentes assolavam os moradores daquela cidade. A menina gostava de coisas diferentes do que as outras meninas apreciavam naquela época, e isto sempre a levava a buscar altas aventuras. O jogo de futebol era uma dessas, não conseguia sequer perder um jogo, fosse ele da Seleção Brasileira ou do time do coração, o São Paulo Futebol Clube, escrete que não deixava a desejar naquela época. Menina pobre, sem muitas condições financeiras, perguntava para os vizinhos se poderia assistir aos jogos com eles. Então, arrumavam a casa, colocavam um telão bem grande, onde havia uma ótima visão, comida deliciosa e bebida à vontade.
Dona Ambrosina era a dona da casa, junto ao seu filho que se chamava Tom. Além de gostar dos jogos, a menina amava subir nas árvores que ficavam em frente a sua casa. Tom, seu vizinho, dizia: “Já vai para sua casa, bicho preguiça?”. As árvores pareciam mesmo a casa da menina, vivia pendurada em galhos grandes e os usava para varrer o quintal, a terra, e por muitas vezes, se estivesse envolvida em confusão, lá estava, sozinha, em seu mundo particular, por um longo período de horas. Seus pais sempre trabalharam fora e, se não fossem os vizinhos, por vezes alguém dava “aquela olhadinha”, para a menina não ir sozinha à escola, mas parece que não dava muito certo. Por ser rebelde, as pessoas que tentavam ajudar sua mãe, acabavam desistindo e mais uma vez, mesmo que pequenina, andava bastante para chegar até o colégio. Deveria ser um lugar acolhedor, longe de seus pais e da família, ali tentava buscar novas amizades.
Naquela época, ouviam-se diversas músicas nos intervalos das aulas, e o que mais a menina gostava, era dos versos irreverentes dos Mamonas Assassinas que estavam na mente e na boca das crianças: “Mina seus cabelos é dá hora, seu corpão violão, meu docinho de côco, tá me deixando louco”. Para autora Eclea Bosi: “A narração da própria vida é o testemunho mais eloquente dos modos que a pessoa possa lembrar. É a sua memória.”
Nos intervalos, ao som marcante, a menina buscava um amigo, tarefa tanto complicada, para alguém que falava pouco, tinha péssima interação e comunicação difícil. Para ela, as árvores e a natureza eram melhores. Quando se embrenhava pelos galhos das árvores, tendo apenas os raios de sol e os pássaros por testemunhas, seu amigo imaginário a acompanhava em algumas brincadeiras, fazendo de seus dias momentos especiais.
Quando ia para a escola, sempre se sentava na mesma carteira, arrumava o plástico amarelo quadriculado em cima da mesa do mesmo jeito, o estojo do lado direito, os lápis de cor enfileirados e prestava bastante atenção nas aulas, as letras eram sua companhia. Não apresentou dificuldades para aprender a ler, parece que tinha um entrelace desde aquela época com as palavras. Era muito focada nas coisas que fazia, talvez isso incomodasse algumas crianças. Viver num mundo só dela, em que se interessava pelas mesmas atividades amiúde, talvez incomodasse algumas crianças: só se interessava em falar de futebol, dos jogos do São Paulo e da Seleção Brasileira.
Num dia como outro qualquer, ao caminhar para ir à escola, após andar pelas ruas e observar atentamente as lindas casas de quintais grandes e muitos cômodos, vários sonhos se passavam em sua cabecinha. A menina sonhava viver numa casa com quintal, pois, o seu espaço livre e vasto eram as ruas, onde passava a maior parte do tempo, quando não estava estudando. Certo dia, chegando na escola, sentou-se no lugar de sempre. Havia uma outra garota que ficava atrás de sua carteira, com poucos cabelos, estatura baixa, olhos pretos, grandes e tinha muito raiva. A tristeza mais uma vez foi protagonista da sua história. Essa criança começou a chutar a cadeira dela todos os dias, xingava e depois dizia: “Você não fala?”. Era isso mesmo, a menina não gostava de muitas conversas, e sem avisar sua professora, cansada daquela rotineira situação, resolveu agir com suas próprias mãos, empurrando sua adversária pelas escadas abaixo. Logo, por esta razão, as outras crianças começaram a odiá-la também.
Meu mundo e nada mais
Quando eu fui ferido
Vi tudo mudar
Das verdades
Que eu sabia
Só sobraram restos
Que eu não esqueci
Toda aquela paz
Que eu tinha
Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado
À meia-noite, à meia luz
Pensando!
Daria tudo, por um modo
De esquecer
Eu queria tanto
Estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo
E nada mais
Guilherme Arantes
Ela estudava no período diurno. Nos dias em que não havia aulas, ficava sozinha em casa. Seu pai trabalhava numa concessionária, porém não ganhava muito, precisava laborar bastante. Saía e dizia para ela não mexer em nada, permanecer sentada em frente à televisão. Orientava: só poderia se levantar, caso estivesse com vontade de ir ao banheiro. Na televisão de cores preto e branca, passava na tela quadrada o desenho com o qual mais se identificava “O Gasparzinho”, ali ficava horas e pedia em pensamento: “Por favor tempo, passe logo, estou com muito medo de ficar aqui sozinha”. Esperava, atentamente, angustiada, seu irmão Wesley, que chegaria por volta de 12:00h.
Existia um parque em São Caetano que se chamava “barreirão”, apresentava esse nome porque havia um buraco grande, lotado de terra vermelha. Lugar bem emblemático, cheio de árvores, flores, um pequeno lago e muita natureza, tudo que ela mais amava. Passeava por ali e ficava horas. Os pássaros realizavam a costumeira orquestra harmônica em homenagem ao criador. Sob esta maravilhosa sonância e uma refrescante brisa no rosto, acomodou-se para descansar. Sem motivo aparente, uma menina chegou de repente bem perto e perguntou: “Você tem o cabelo comprido e muito bonito, né?”. Logo, pegou o isqueiro e acendeu embaixo de suas madeixas dizendo: “Vou queimar seu cabelo!” Ela ficou em pânico, e, devido a isso, permaneceu estática. Graças a Deus não houve êxito, uma alma piedosa, um menino de olhos escuros e pele morena, de estatura média, sem se apresentar, implorou para a algoz não tomar essa atitude. O nome de seu salvador, simbolicamente era Saulo. Foi embora do parque triste e cheia de medo, pois parecia que nunca era possível ter um amigo, ou ao menos ter paz.
No Barreirão, aconteciam também shows importantes. Famosos como Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó. Tocavam músicas sertanejas bastante executadas nas rádios e apreciadas pelo público da época. Era o tempo do famoso show televisivo, “Amigos”. Aquele palco de inúmeras apresentações, cujos espectadores seguravam animados em suas mãos, luzes coloridas fluorescentes, entoando coro alto, parecia sorrir para todos da multidão, só não para a menininha.
Nas inúmeras tentativas de fazer amizade, o insucesso era evidente, o tempo passou e ela encontrou, por meio da transcendência, o amor de Deus era seu aconchego. Na ânsia de ter amigos, desistiu de procurá-los. O amor tem de ser graça: “De graça recebeste, de graças dai.” Perguntava a si própria: “Até quando é certo implorar pelo amor?”.
Em 1945, o curta Friendly Ghost na série Novel Toons, mostrou a história de uma personagem que queria fazer amigos, mas nunca dava certo. “Gasparzinho”, era um fantasminha que só queria se aproximar dos vivos. Era tão ansioso que as pessoas achavam que tinha más intenções.
Nos anos noventa, essa meninazinha brasileira de São Caetano do Sul, não perdia um episódio de Gasparzinho, ela não sabia bem o porquê. Qual no fim das contas seria o espectro de Gasparzinho, o fantasmagórico ou o autista? Por qual razão essa menininha se identificara tanto com a personagem.
Com o passar do tempo as coisas ficaram mais claras para ela. Cresceu, e ao longo de sua trajetória continuou tendo dificuldades para se relacionar e fazer amigos. Muito embora tivesse sido uma época feliz de sua vida, a infância em sua parte ruim, sempre voltava feito deja vu: em todas as ocasiões da adolescência e da vida adulta não conseguia se integrar ou fazer amigos. Desconfiada de que podia haver algo errado, realizou testes psicológicos a fim de saber se era ou não pessoa com Transtorno do Espectro Autista-TEA. Afinal de contas, caso isto se confirmasse, seria possível compreender a identificação com a personagem Gasparzinho, além da dificuldade de socialização. Via a si própria como aquele espectro que aparecia nas TVs brasileiras que tanto animava as crianças, mas que no fim das contas perambulava por toda parte e não conseguia fazer ninguém gostar dele. Seus únicos companheiros eram outros dois fantasmas maiores que praticavam bullying com ele.
Enfim, se sentia dessa forma, translúcida, transparente, como algo ou alguém estranho que as pessoas não eram capazes de entender e sempre as assustava. Era como se houvesse um abismo onde ela estivesse de um lado, o mundo inteiro do outro e uma ponte quebrada no meio para que jamais conseguisse chegar aos outros. Essa criança é como muitas outras, talvez autistas, que por falta de informação, preconceitos, falta de investimentos, passam uma vida inteira sem o diagnóstico fechado. Ficam sofrendo bullying, exclusão, dentro de um processo de sofrimento que tem muitas dimensões, inclusive subjetivas e difíceis de serem compreendidas por quem não tem o transtorno. Um autista eventualmente pode apresentar as seguintes características: déficits de interação e socialização, comunicação ausente ou precária, como iniciar e manter conversas, dificuldades de reciprocidade, comportamentos repetitivos, hiperfoco, interesses restritos, dentre outros. E, pode apresentar três níveis de suporte.
Caro leitor, se acaso você desconfia ou percebe alguém com esse tipo de comportamento, ajude, tenha paciência. Aos professores fica aqui o apelo para que não deixem as crianças sofrerem bullying, afinal é possível criar muitos gasparzinhos no mundo real. Se você apresenta algumas dessas características, procure um profissional especializado e faça uma avaliação Neuropsicológica.
“Seria o amigo imaginário da menininha um fantasminha Camarada?”
Esconderijo perdido
Desde cedo, para se proteger
Adotou muitos disfarces
Perdeu as contas,
Das vezes que, em vão,
Quisera ter um amigo
Desistiu dos vivos
Abraçou a transcendência
Presa na inocência
As árvores, os galhos,
Os pássaros a ouviam
A escrita foi sua morada
As pessoas não a entendiam
Olhavam para ela
Feito quadro de Pollock
Encontrou na literatura
Os amigos perdidos
Nunca encontrados
Um dia quis, das pessoas
A amizade verdadeira
Já dizia Kant
“Não existe caminho,
Para o ser cognoscível”
Não dá para conhecer
As coisas, de verdade
E ainda menos os seres humanos!
Quem dera todas as pessoas
Fossem mesmo evoluídas
Como ensinou Charles Darwin
Sua presença doía nos outros
Por isso se escondia
Na caverna noturna dos devaneios
E apenas nos seus bunkers
Sentia-se segura
No berço de seus sonhos
Há mais existência
Do que no mundo real
Em sua caverna inverossímil
Reencontra-se a tempo
Com a sensibilidade
Esquecida de menina
Como Elias no monte Horebe
Se escondeu do mundo
É preciso ser sensível para existir
Por isso dói tanto
Procura-se a antiga inocência,
Os amigos perfeitos dos sonhos
Porque os reais desapareceram
Ou sequer existiram
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