Ivo Aparecido Franco
O filme de 1971 retrata algo complexo e bastante atual, no caso, a luta secular da racionalidade para permanecer em pé perante a mediocridade do mundo. O matemático David Sumner (Dustin Hoffman) se muda para uma cidade pequena, em busca de sossego, sendo que contrata um grupo de trabalhadores locais para que o ajudem no término do serviço da casa. A batalha da razão contra o irracional se descola do mundo real e se espraia pelo filme todo e o diretor do filme, Sam Peckinpah, já entrega ao espectador a pedra de toque da narrativa, logo nos primeiros minutos da película, quando Amy Sumner (Susan George) vai até o quadro negro onde o marido trabalha numa equação e apaga o sinal de menos. Ali já fica bem claro que Amy, mais do que a esposa de David é também sua nêmeses, alguém que caminha no rumo diametralmente oposto ao do marido. Existe uma atmosfera implícita de dissimulação na relação entre a mulher e os trabalhadores, um jogo de claro escuro onde não é possível determinar se ela acha ruim ou se compraz do do flerte que os homens da cidade fazem com ela, apesar do marido. (Quem não quiser spoiler, pare aqui).
Na obra de Platão existe uma ideia implícita, quase um Éden prometido àqueles dispostos a se submeterem às leis da razão: sê racional e terás tudo. Não é bem assim que a banda toca. O mundo não é um lugar que privilegia as pessoas racionais, ao contrário do que tenta fazer parecer. Ser racional não é fácil, na verdade é um convite ao sofrimento a um martírio típico de um Jó, algo apenas recomendável aos mais fortes. Se fosse para definir a razão em uma imagem apenas, como é ser racional, eu escolheria “Cristo carregando a Cruz” do brilhante Jerônimo Bosch. A imagem mostra a serenidade do rosto do Nazareno, durante a via crucis, enquanto uma camarilha ri e se compraz de seu calvário. Ser racional é isto. Aguentar a imbecilidade do mundo, potencializada depois da internet. A ignorância se espraia feito ratos no esgoto, se materializa em pessoas ruins e arte ruim.
Voltando à história, David é chamado pelos trabalhadores para caçar patos em um lugar em que não conhece, ao mesmo tempo, os trabalhadores locais voltam até sua casa e estupram sua mulher.
O embate entre razão e irracionalidade é secular, Nietzsche contra quase tradição ocidental inteira. Em vários momentos da obra, Amy chama atenção de David reprimindo-o. Ambos representam o embate paradoxal, filosófico entre duas linhas de pensamento bastante diferentes, a verdadeira reprodução do duelo entre duas interpretações de mundo diversas, a meu ver, a de Nietzsche, podendo levar à destruição global se adotada em grande escala. Afinal, Amy é uma típica representante das ideias do filólogo alemão, já David, é obrigado a suportar todo o peso de sua escolha pela razão. Há um momento na narrativa inclusive que, quando vai ligar a vitrola e tocar uma música escocesa que gosta, Amy ordena que ele desligue. Ela pode, porque é mais forte, porque encarna o super homem nietzschiano, sabe que pode. David naquele momento, cede, obedece. A razão, por temor, muitas vezes se cala.
Mais ao final do filme, um tal Henry Niles, que tem uma doença mental, acidentalmente mata uma moça, levando a cidade a se revoltar contra ele. Tudo é muito simbólico. Niles, representa o hipossuficiente. Os trabalhadores, os mesmos que estupraram a mulher de David, um pouco porque ela quis, decidem matar Niles. Nesse momento, David Summer se rebela: leva o enfermo mental para a residência e, ainda que contra a vontade de sua mulher, monta uma mini fortaleza em sua casa e a defende contra a sanha dos invasores, que desejam invadi-la. Um por um, enfrenta os bandidos, com água quente, ferro em brasa, porrete, tudo que acha pela frente. Um deles morre numa armadilha de urso. Outro símbolo: indica que o sujeito não passava de um animal selvagem, outra vitória da razão.
No fim de tudo, David não só toca sua música da gaita de fole como também mata um por um dos malfeitores que queriam matar Niles e estupraram sua mulher. Um grito de liberdade. Sam Peckimpah, nesta obra prima de 1971, um pré Clockwork Orange demonstra que é possível o triunfo da razão sobre a bestialidade. Mas, caro leitor, é preciso ter raça é preciso ter força, é preciso ter gana, sempre!!!! Cachorros de Palha é um convite a que todos nós sejamos racionais no grande coliseu do mundo, apesar de todas as feras.