Ivo Aparecido Franco
Mais uma festa sem graça de fim de ano no hospital. Enquanto me dirigia ao encontro usual com os colegas de trabalho, várias coisas me passavam pela cabeça, umas por sobre as outras. Na Avenida Paulista, papeis picados eram jogados da janela, louros da vitória pelo fim de mais uma jornada, a esperança de reinício de um ciclo novo, sonhos derramados sobre as ruas na mesma proporção dos papeis.
De minha parte, seguia com os olhos fixos em lugares aleatórios da avenida, tentando sobretudo acalmar os pensamentos tão intensos ao longo do ano. Era difícil saber que o principal catalisador de minhas reflexões, ou das não reflexões, estaria naquela festa, como sempre numa distância inconvenientemente segura, tal qual a tartaruga se distanciava de Aquiles. Malditos gregos, sempre tão racionais.
Umas quadras a mais e logo estávamos no salão de festas, um lugar meio démodée, para dizer a verdade. Bom, talvez para mim, qualquer salão de festas seja meio démodée e o meu paradigma seja o tal “Heautontimoroumenos” de Baudelaire. Ao menos para mim que desde muito tempo sou depressivo e nunca fui chegado em comemorações ou festas, todavia, infelizmente em nome do bom convívio social fora obrigado a comparecer. No meu caso, ao menos dessa vez, minha dor não era a dor do masoquista, eternizada num poema famoso. Minha dor tinha existência, perfume e encanto. Talvez fosse uma variação bonita do conceito de Baudelaire.
Paguei o taxista, dei-lhe um sorriso e subi as escadas rumo ao salão principal e, lá estavam eles: os colegas de trabalho geralmente patéticos, nessas festas de fim de ano, ainda mais lamentáveis. A pior coisa acontece quando alguém inventa que sabe dançar sem saber e nesses lugares há uma profusão desses indivíduos. Tal qual minhocas com espasmos, espraiam-se pelo salão de festas achando que incorporaram o Fred Astaire ou Debbie Reynolds.
Entre um sorriso e outro, esperava que ninguém viesse para me encher a paciência e que pudesse eventualmente beber alguma coisa a fim de esquecer os problemas, saborear um salgado em silêncio até que o último convidado saísse sem ver minha cara e principalmente sem me falar de paciente nenhum. Acima de todas as coisas, esperava que ela não tivesse vindo. Não queria que aparecesse no salão de festas. Torci para que Silvia tivesse uma dor de cabeça, uma indisposição qualquer e devido a isso não fosse até o salão. Desejei do fundo do coração que seu marido a tivesse levado para jantar em algum lugar legal, daqueles nos quais eu a levaria caso tivesse oportunidade. Rezei a Deus para que não viesse.
-Carlos, você veio!
Ai meu Deus, o Lucas-pensei-com toda certeza vai sentar aqui do meu lado e ficar falando de trabalho. Era a última coisa de que eu precisava naquele momento. E de fato foi o que aconteceu: Lucas desembestou a falar sobre pacientes enquanto lhe dirigia respostas lacônicas e cada vez mais embebidas em martini seco, aliás, ótima chance de ficar bêbado e esquecer dos problemas. Olhei no relógio sem me preocupar se Lucas iria achar que era por causa dele, porque era mesmo. Fiz isso a fim de saber se faltava muito tempo para que terminasse aquele martírio e também a fim de descobrir se Silvia realmente não viria, o que me deixaria aliviado, ou se viria, o que também me deixaria feliz.
O suspense não demorou. Silvia cruzou a porta, deslumbrante. Um vestido bastante colado ao corpo, cabelo perfeitamente penteado e a delicadeza de sempre. Sob os olhares atentos de vários homens, se dirigiu a uma cadeira no lado oposto ao qual estávamos eu e Luís, ficou por ali bebendo algo. Observei-a, fazendo o possível para que não notasse, assim como fazia todos os dias no hospital.
Súbito o improvável aconteceu. Iniciou uma música qualquer, ela se levantou. Ia chamar algum vagabundo a dançar. Por que o marido não veio junto ? Isso evitaria que eu sentisse ciúmes. De repente aconteceu o improvável do improvável. Silvia veio em minha direção perguntando:
-Quer dançar comigo ?
Tentei receber o pedido com naturalidade, contudo, queria mesmo era me enfiar num buraco no chão e me enterrar. Queria dançar com ela, evidente, mas como esconder uma paixão tão violenta no meio de uma dança, algo assim tão íntimo ? A fim de não dar a entender que havia algo de errado, levantei e estendi a mão, aceitei o convite rápido.
Começamos a dançar. Tive medo, porque era fácil esconder segundas intenções à distância, dissimular o desejo quando apenas passávamos um pelo outro nos corredores, só que ali, meu rosto estava a poucos centímetros do dela. O perfume de Silvia se enleava pelo meu corpo inteiro como se fosse o implacável laço da verdade e se fosse mesmo para dizer o que queria, ia cair ali de joelhos na frente de todo mundo e dizer: “Como eu te amo, infelizmente não queria que isso acontecesse, mas meu coração pulou do peito sem que eu visse e foi direto para suas mãos, agora o mundo não tem o menor sentido sem você, Silvia”. A festa pararia evidentemente. Nem gostaria muito de pensar como seriam o resto de meus dias trabalhando no hospital depois disso. Qual boxeador que acabou de tomar um golpe muito forte, baixei a cabeça, para que nossos olhares não se cruzassem, à distância assim tão curta as palavras não são mais necessárias, ela seria capaz de sutilmente retirá-las de minha boca através de minhas pupilas, a janela da alma. Não sei se baixar a cabeça foi algo melhor. Senti o perfume envolvente da trama intransponível dos cabelos de Silvia. Essa é a palavra: intransponível. Ela talvez à distância tão curta fosse capaz de ler meus pensamentos, quanto a mim, conseguia percebê-la somente como alguém escondida atrás da linha Marginot. Também estaria interessada em mim? Que cabelo perfumado. Era uma dança. Se de repente eu a deitasse nos braços à moda antiga, assim como eles faziam nos filmes, talvez ela se abrisse inteira feito uma flor, só porque talvez fosse realmente uma flor, cujo néctar intangível fez da minha vida nos últimos tempos algo mais doce. Com a cabeça baixa em seus ombros senti o riso se desfazendo em minha própria boca. Esperei que nossos olhares não se cruzassem novamente, não foi o que aconteceu: cruzaram-se brevemente e senti-me tentado a encará-la tal qual um homem deve realmente fazer com uma mulher quando está interessado, porém de repente lembrei de todas as limitações e possíveis consequências de flertar com uma mulher casada.
Pois bem, a música. Respirei fundo. Iria focar na música, quem sabe assim conseguiria chegar melhor ao final daquela dança. Meus sentidos, de tão aguçados que estavam, sequer deixaram perceber o que tocava, todavia, curiosamente, de alguma maneira eu sabia que estávamos no compasso correto. Assim, meu foco saiu de Silvia e passou direto para a música do salão. Liguei meus ouvidos bem nesse trecho:
I look at you and i fantasize
You´re mine Tonight
Now i´ve got you in my sights
With these hungry eyes...
(música indicada ao fim do texto)
Se havia uma coisa que podia me ajudar menos naquele momento era ouvir Eric Carmen. Estávamos na época do Dirty Dancing. O filme estava bombando no cinema.
-Olhos famintos-ela disse com aquela voz despretensiosa que alcançava o último terço do coração.
-Oi, o quê ?-perguntei preocupado.
-Olhos famintos...a tradução da música...você tá bem, estou te achando tenso hoje ?
O rosto dela se iluminava mais e mais na medida em que falávamos:
-Não, só que está muito quente.
Ela abriu um sorriso ainda maior e quis colocar a cabeça no meu peito.
Recuei um pouco. Foi em vão. Ela fatalmente perceberia que meu peito parecia uma bateria de escola de samba e isso poderia me denunciar. A área médica é uma das piores para se tentar esconder algo assim, afinal Silvia tinha experiência, era cardiologista e a essas alturas sabia que meus batimentos estavam alterados. Percebi um riso de soslaio escapar pelo canto de sua boca diversas vezes. Disfarcei, se não acabaria beijando-a.
Hungry eyes...Eric Carmen... estava quase no fim. Ela pediu que dançássemos uma música, estava feito. Senti como se estivéssemos bailando nas nuvens e ali não houvesse mais ninguém, só que também sabia o quanto fiquei exposto. Ela deve ter percebido, se é que não notou antes. O pessoal do trabalho também deve ter notado... Hora de voltar a minha cadeira e ao martini seco. Aliviado pelo fim da dança, suava frio.
-Dança mais uma comigo! – a voz de um anjo sussurrou no meu ouvido, diria Alceu Valença. Como poderia resistir? Ela pediu outra. Acho que estava me provocando. Nervoso e confuso assenti com a cabeça. Depositei todas minhas esperanças na próxima música, que fosse festiva, que não fosse romântica, pelo amor de Deus. Começou:
Baby, now that i found you
I won´t let you go
I build my world around you...
(música indicada ao fim do texto)
Ah, Alison Krauss. Ótimo. Era tudo de que eu mais precisava, talvez mais romântica que a primeira. Não havia mais alternativas, fiz o possível até então. Essa canção foi o tiro de misericórdia, assim, me entreguei aos olhares de Silvia a seu ritmo, perfume, a todo aquele jogo injusto ao qual estive submetido. Estar apaixonado é assim, parece que giravam uma faca no meu peito!!!
A música terminou. Sobrevivi sem saber, entretanto, se a mesma miríade confusa de sentimentos que carrego comigo são recíprocos. Sorrimos. Nos afastamos. Ao final da dança, vários de nossos colegas de trabalho nos encaravam como se tivessem acabado de ver algo mágico, secreto ou profano. Nos afastamos. Voltei ao meu lugar, porque sei dele. É uma mulher casada, precisamos saber de nossas responsabilidades repeti esse mantra chato para mim mesmo mentalmente.
Fui perto de Lucas de novo:
-Cara-disse ele-não é possível! Só quem está muito apaixonado se olha desse jeito!!!
Tomei mais um gole do Martini.
-Lucas deixe de bobagens. A Silvia é comprometida, foi só uma dança, nada mais que isso.-Lucas deu de ombros.
A seguir, por ironia começou a tocar aquela do Kenny Logins. Caramba, pensei. Poderia ter tocado uma antes, assim não me deixaria tão exposto, músicas românticas afloram e expõem ainda mais o sentimento.
Nos anos seguintes, eu e Silvia continuamos a trabalhar no hospital. Houve outros fatos bem interessantes, hoje quis lembrar dessa festa de final de ano porque sei que assim como eu, há muitas outras pessoas por aí dissimulando os sentimentos, tentando fazer o que é certo apesar das peripécias do coração. Aguente firme. Ou não aguente firme. Até hoje não sei qual o correto a fazer para dizer a verdade.
Woody Allen certa vez disse algo sobre o casamento que vou parafrasear falando sobre o amor. Uma vez me perguntaram se o amor existe, o que respondi foi o seguinte: se o amor existe ou não, não sei. Mas se a vida é um deserto, o amor é uma das miragens necessárias para ajudar a manter a alegria e a esperança!
Para dançar com Carlos e Silvia:
Hungry eyes
https://www.youtube.com/watch?v=2ssCL292DQA
Alisson Krauss:
Now that i´ve found you
https://www.youtube.com/watch?v=l5QLod7F0Yk
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Entre e fique a vontade