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A CASA

Por: Redação
16/11/2023 às 13h56 Atualizada em 19/11/2023 às 22h35
A CASA

“O contrato social para Rousseau é um acordo entre indivíduos para se criar uma sociedade, e só então um Estado” Eu: (posso ler antes de assinar?)

Ivo Aparecido Franco


Há alguns anos começamos a construção de nossa casa. Eu era trabalhador de aplicativo e minha esposa enfermeira recém formada ganhando salário ainda bastante baixo, isso faz uns dez anos. Foi algo complicado acompanhar a montagem de nossa residência, pois, para pagar as contas era obrigado a trabalhar praticamente o dia todo e quase até o início da madrugada, afinal, as dívidas se acumulavam entre pedreiros, móveis e materiais de construção. Como ela também contava com pouco tempo, não acompanhou os trabalhos de engenharia devidamente. Para se ter uma ideia, trabalhei tanto que sequer consegui ir comprar os móveis junto com Jéssica. Só vi os móveis por meio de algumas fotos de celular enviadas por ela, quando fora adquirir a mobília juntamente com minha sogra. Estava exultante. Vê-la com as maçãs do rosto bem coradas, os olhos brilhantes e todos os dentes à mostra cada vez que nos encontrávamos era algo de valor inestimável. Durante aqueles tempos lamentei bastante o fato de estar praticamente escravizado pelo aplicativo de viagens e sequer conseguir coordenar o trabalho dos pedreiros, selecionados através de uma empresa que minha sogra reputava ser bastante confiável. A princípio fiquei tanto desconfortável com a possibilidade de contratá-los, mas depois cedi, notando que não haveria tempo sequer para buscar outra empresa. Desse modo, nos reunimos com o mestre de obras, eu e Jéssica, tentando explicar nossas ideias de construção da maneira mais detalhada a fim de que não restassem dúvidas e eles pudessem tocar a obra sozinhos da melhor forma possível. Na maior parte da reunião, Jorge assentiu com a cabeça sinalizando ter compreendido nossos pedidos de forma satisfatória. Dois meses antes do término da construção eu estava bastante ansioso para ver o resultado daquilo que havia sido feito, então fui até lá. Depois de muito tempo era o momento de conferir o andamento das coisas, saber o quanto aquela cópia imperfeita de nossas ideias, o lugar em que viveríamos pelo resto de nossas vidas poderia nos fazer felizes. O mestre de obras, sujeito bonachão, baixinho, olhos grandes e cenho franzido, veio me receber com um cumprimento na ponta da rua. Seguimos a pé porque ele informou não haver necessidade de que pegássemos o carro. Como o sujeito falava excessivamente, mal prestei atenção às outras casas do caminho ou à paisagem:

      -Estou feliz de que esteja aqui, outra hora tente vir com a patroa também para acompanhar o serviço.
À medida que nos aproximávamos do lugar, o mestre de obras parecia inclinado a cuspir mais e mais palavras, feito crianças na vã tentativa de enganar os pais porque fizeram algo de errado.
Finalmente, lá estava do outro lado da rua: o sobrado com um pequeno jardim tropical à frente, janelas chinesas e portas no estilo oriental. O acesso para a entrada principal era por uma pequena calçada de pisograma, que foi razoavelmente cara e me custou várias horas extras de trabalho no aplicativo. Jéssica gostava bastante de natureza, então fez questão de que também houvesse uma sebe viva.
O mestre de obras fez um gesto suave com a mão em direção à moradia, então caminhamos vagarosamente. No caminho aproveitei e conferi a condição das plantas que havíamos pedido para comprar. Em derredor, os pedreiros seguiam, cada um no cumprimento de suas tarefas, entre andaimes, sons de serrotes, seguimos adiante, acertando novos detalhes sobre materiais que ainda deviam ser comprados. De cara percebi algo muito estranho:
      -Ei, amigo: essa não foi a porta que nós pedimos para ser colocada-disse a ele sacando o celular do bolso a fim de conferir a imagem.
      -Pois é- respondeu o bochechudo sujeito- acreditamos que essa porta aí se adequa melhor ao estilo de casa que nos pediram
Fiz um breve silêncio.
      -Como assim acreditam? Acho que fomos bem claros em relação à escolha dos itens para a casa. Dissemos que tínhamos escolhido tudo e que não queríamos mudar.
O cidadão coçando a nuca com uma das mãos e enxugando o rosto com uma toalha utilizando a outra, respondeu:
      -Pois é, amigo. Nossa empresa tem uma filosofia, que de verdade, não é só nossa, é secular, mais antiga, aplicável e difusa do que possa parecer. Não nos limitamos a seguir aquilo que os clientes dizem. Há determinadas coisas que acreditamos ser fundamentais no quotidiano de qualquer um e não abrimos mão de determinar ou fazer ajustes, a despeito da opinião dos clientes.
Meu sangue ferveu. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Que tipo de empresa era aquela que apesar das escolhas feitas tão cautelosamente por mim e Jéssica se atrevia a, de forma deliberada, alterar as coisas. Irritei-me, então achei melhor que seguíssemos adentro. A porta se abriu. Dei de cara com um teto extremamente baixo a ponto de causar até certo desconforto:
      -Que é isso? Não tínhamos combinado a medida desse pé direito? Por que tão baixo?
Apesar do constrangimento, o mestre de obras redarguiu:
      -Será mais difícil de te explicar essa parte, mas aqui posso dizer que foi somente uma questão de respeito às ancestralidades arquitetônicas. Ultimamente esse pé direito baixo anda bastante em voga, então decidimos manter, foi um presente nosso, nem precisa agradecer. Imaginamos que logo vocês irão se adaptar.
Se há alguns minutos meu sangue fervia, agora estava em ebulição e quase a ponto de evaporar. Que seria isso? O que eu diria à Jéssica¿ Nem sei que diabo é isso de “ancestralidade arquitetônica”. Já vinha há um tempinho acreditando que Ivo Holanda sairia de dentro de alguma parede falsa, apontaria uma câmera e me daria um abraço, até por isso olhei dos lados instintivamente.
      -Procurando alguma coisa, senhor?
Meneei a cabeça em sentido negativo:
      -Não, nada. 
Porém, olhando dos lados encontrei mais uma coisa que de imediato me incomodou:
      -Não havíamos pedido uma escada caracol ao invés de uma escada reta?
O rechonchudo mestre coçou a cabeça e corou de vergonha. Parecia evidentemente constrangido pelas minhas questões. Quanto a mim, além de estupefato com todos aqueles absurdos, ainda me sentia oprimido com os olhares estranhos dos pedreiros. Ao contrário do constrangimento da chefia, os construtores pareciam bastante convictos daquilo que faziam e me encaravam de modo ameaçador.
      -Ouça-disse o mestre de obras olhando na direção dos pedreiros-aparentando ainda mais nervosismo: faz perguntas demais, meu amigo. Quando contratamos uma empresa é quase feito escolher um modo de vida, precisa deixar as coisas serem como são. A propósito, tem certeza absoluta de que realmente foi você quem escolheu sua esposa?
Achei a questão tanto enigmática e de repente minha cabeça começou a rodar, talvez pelo choque de saber que as coisas não estavam sendo conduzidas da forma como planejamos. Já que praticamente minha esposa e sogra haviam escolhido os móveis, achei que ao menos na arquitetura da casa poderia haver algo meu, autoral. Comecei a suar frio.
      -O senhor está bem? - perguntou Jorge.
      -Sim, sim. Mas esse teto está muito baixo. Está me sufocando. Vamos do lado de fora, quero tomar um ar.
Jorge deixou que me apoiasse em seu ombro. Ao me aproximar dele, senti um cheiro estranho, porém bem familiar, contudo, como minha cabeça rodava demasiado, não consegui identificar o que seria. Encostei-me na sebe viva, Jorge me arranjou um copo d´água que virei na garganta bem rápido.
      -Está melhor, senhor?
      -Não sei- respondi-não sei. Se fiquei desse jeito até aqui, não sei como vou ficar quando vir o resto e pior ainda, como minha esposa vai reagir.
      -Sabia que agiria dessa forma. Mas realmente acho que ficar chateado desse jeito configura, sem sombra de dúvidas, um ato de discriminação passível até de processo.
Com as mãos apoiadas nos joelhos, tentando retomar o fôlego, ouvi incrédulo a última frase de Jorge. “Nos processar por discriminação”! Nem sabia o que dizer daquilo.
Meu estômago levemente embrulhado me fez sentir vontade de vomitar, apesar disso falei o que achava:
      -Jorge, não é nada pessoal, mas acho que deverá tirar seus pedreiros daqui. Foi um bom trabalho, mas não creio que estejam atendendo nossas expectativas.
      -Expectativas...humpf-desdenhou-como te disse, se quisermos podemos processá-lo por atos discriminatórios.
A paciência acabou, então passei a gritar umas coisas que nem eu mais entendia.
      -Certo. Pelo visto não nos quer mais por aqui. Vamos embora, mas desde já, nossa presença aqui ou não, independe de tua opinião. Pode deixar, iremos sair.
Súbito, algo estranho aconteceu: Jorge começou a desvanecer, apagar gradual e vagarosamente, até sumir por inteiro, como se fosse um holograma. Olhei na direção do pedreiro que trabalhava no telhado, aconteceu o mesmo. Parecia até estar ostentando um estranho sorriso maligno, feito gato de Cheshire. Também desapareceu. Assim sucessivamente, até cada um deles desvanecer por completo. Não restou ninguém. Tive uma epifania: flores! Jorge tinha cheiro de flores pelo corpo! Como não percebi, aqueles homens estavam mortos! 
Vários pensamentos me passaram pela cabeça, inclusive o de que infelizmente teríamos  de aceitar tudo do jeito que estava. Não contávamos com dinheiro adicional para esse tipo de imprevisto.
Verifiquei melhor o terreno da casa: o que antes me pareceu um lugar bucólico e adequado à instalação da família, assumiu ares ameaçadores e terríveis. Uma terra marrom, quase preta num terreno cediço e poroso ocupava todos os lados. Não sei por qual razão nos interessamos pelo terreno. Também não sei se teria coragem de contar à Jéssica o que havia acontecido.
Corri desembestado na direção do carro. Antes disso, passei as mãos pela camiseta verificando minha roupa. Percebi algo assustador: talvez até minhas vestes pertencessem aos mortos.
 

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