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O Quilombo perdido de Freire

Ivo Aparecido Franco

Por: Redação
11/07/2023 às 16h34
O Quilombo perdido de Freire

Era uma vez um quilombo. O quilombo de Freire, perdido no meio da floresta, invisível dentre milhares e milhares de árvores da mata tropical. Provavelmente vocês nunca devem ter ouvido falar dele e de fato não é algo surpreendente ser desconhecido, afinal, dentre tantos e tantos existentes, os livros de história ressaltam apenas o legendário Palmares. Não é para menos. Palmares foi símbolo de resistência, encravado no belíssimo estado de Alagoas, sob a liderança de Ganga Zumba e depois de Zumbi sendo que poucas comunidades daquela época foram tão resilientes. Entretanto, a resistência negra e indígena aconteceu na cidade, nas praias, nos campos, por isso é bastante errado acreditar somente no fenômeno de Palmares como algo isolado. Por que os outros mocambos não aparecem nos livros de história? Por que tanta ênfase somente na matriz europeia, na cultura ocidental? Por que falar tanto sobre o domínio europeu? É quase como se permanecêssemos imobilizados pelo olhar hipnótico e transcendental das estátuas greco-romanas e devido a isso não conseguíssemos nos enxergar mais em nós mesmos. Parece que nos livros de história nos renegam uma parte fundamental de nossa identidade pelo temor iminente de que por acaso, de repente, nos reconheçamos índios, mulatos, negros e quilombolas. Rebeldes e quilombolas! Quem não conhece o próprio passado de resistência, simplesmente não resiste.

Um dia, os professores cansados de apanhar na Paulista em dia de greve, dos baixos salários, dos maus tratos do Estado, da falta de materiais, da falta de respeito com a profissão e dos desmandos de administradores incompetentes, se retiraram para o quilombo de Freire, sob a liderança de um certo Paulo, muito xingado e defenestrado pelos dominadores, por aqueles que têm raiva da educação e que não gostam do ensino. 

Em Freire, as crianças eram convidadas a pensar, conviviam com a natureza, aprendiam sobre biologia no meio das matas, comiam frutas doces direto do pé. Ali se plantava mandioca, feijão, como nos velhos mocambos e ninguém tinha preguiça de estudar, pois os moradores de Freire tinham direito a três refeições dignas todos os dias. Os moradores do mocambo sentiam o cheiro da terra, do café quente pela manhã, tudo era encanto. Em Freire, as crianças jamais eram abandonadas pelos pais, portanto iam à escola felizes e sempre dispostas a estudar, porque isso interfere diretamente no desempenho de qualquer aluno. Essas coisas não são culpa do professor, por sinal. Também não presenciavam cenas de violência doméstica, afinal quando estão tristes, quando vivem assim, não querem estudar. Ninguém quer. 

 Enquanto desfrutavam da natureza, aprendiam sobre o grande valor da filosofia, do pensamento. Os demais quilombolas, juntamente com professores e alunos praticavam a peripatética, caminhavam enquanto discutiam os grandes temas do pensamento. Lendo Darwin, passaram a ter mais respeito pela maravilhosa e esplêndida obra de Deus, porque compreender a obra é a melhor maneira de prestar reverência ao divino.

Em Freire não havia muitas luzes artificiais para atrapalhar a visão. Então, um dia alguém arranjou um telescópio e encantados, pais, filhos e professores, puderam observar de modo cristalino pelas lentes tudo o que encantou os incrédulos olhos de Galileu.

No quilombo de Freire não havia armas, havia livros com muitas obras e bibliotecas subterrâneas para protegê-los. Como o quilombo era um país e toda nação precisa de uma constituição, a carta magna do mocambo, escolhida por votação, foi o poema Pasárgada de Manuel Bandeira. 

Os poderosos, é claro, não gostaram disso. Logo vieram para buscar de volta os professores, a fim de trancafiá-los de nos prédios lúgubres do Estado, fazê-los voltar à situação de humilhação e baixos salários. Porque as notícias sobre professores e crianças felizes se espalharam por toda parte. Souberam que as crianças não tinham mais fome, gostavam de estudar e que os mestres eram admirados. Isso é claro, levantou uma série de questões: o povo estava lendo em Freire, se educando. Quem votaria em políticos medíocres e sem proposta alguma a partir disso? As pessoas elegeriam somente aqueles que valorizassem o ensino e dessem dignidade à população. Ninguém admitiria mais corrupção e o povo começaria a muito facilmente distinguir a verdade da mentira, com isso ninguém poderia mais se aproveitar das notícias falsas. 

Sucederia a Freire o que ocorreu com Monte Santo, Palmares e tantos outros pilares de resistência. Tentariam silenciar os mestres como fizeram com os trabalhadores esquecidos da Pacheco Fernandes. Provavelmente quedariam com dignidade e seriam enterrados junto com os livros. Cada livro do quilombo era pedaço de um milagre, tão protegido como se protegeria as crianças ou os mais velhos, tão bem guardados como se fora uma caixa forte com reservas auríferas. Mas ninguém ali queria nada com armas.

Não demoraram a cercar Freire. Havia sujeitos armados no meio do mato, nas montanhas, saudosos do coronelismo, do mandonismo da casa grande, da opressão que os beneficiara durante tanto tempo. Logo marcharam na direção da cercania, quando para surpresa das milícias encontraram numerosa população que não deixou que se aproximassem. O povo havia se instruído, interiorizado a informação, por isso jamais estaria disposto a suportar novamente as mentiras dos telejornais, os hospitais mal equipados, as roubalheiras dos políticos. Era o que Paulo Freire queria: ver o povo politizado e resistindo. Restava aos antigos donos do poder recuarem e dar lugar vagarosamente a uma nova ordem que se estabelecia, feito  manhã  que pousa no horizonte cheia de promessas e esperanças. Aos inimigos do ensino seria possível somente ofender Paulo Freire, ainda que sem ler uma página acerca de suas ideias. Eles também falariam mal dos professores, tentariam atrair o povo ao velho e corroído sistema. Contudo, ninguém trocaria mais aquele modo livre de viver, pelos velhos coronelismos.

Termino esse artigo por fim dando a localização desse mocambo, que jamais será em verdade atingido ou destruído por milícia ou exército de natureza alguma. Freire, se localiza logo a oeste de nós, nas curvas bem irrigadas do coração pulsante de cada professor e de cada cidadão de bem real desse país, esperando a hora certa de se espraiar pela realidade.

 

 

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